Meu ofício


Escrever é um das únicas coisas que me fazem sentir muito bem. Tenho segurança enquanto escrevo, sei que não tem como eu errar na minha escrita, na minha arte. Talvez eu possa errar uma palavra, quem sabe um erro de concordância, mas isso é técnico. To falando de outro tipo de erro. Falo de um erro mais pessoal, de propósito, erro de estar fazendo algo que não era para você estar fazendo. Sabe?
Atualizar planilhas, organizar correspondências, emitir boletos, assinar recibos, fazer relatórios, montar slides no power point, são tarefas simples, mas por incrível que pareça, muitas vezes consigo ser medíocre fazendo essas atividades. E você sente quando está fazendo algo que realmente não veio ao mundo para fazer.
É obvio, você tem que fazer para sobreviver e até deve ser grato por qualquer trabalho que tenha, pois é seu ganha pão, todo mundo precisa fazer, mas talvez todo mundo esteja sendo medíocre. Quando escrevo, não sinto essa sensação de mediocridade, não passa pela minha cabeça que eu possa estar errando e que, talvez, alguém vá me dar uma bela comida de rabo. Não existe essa possibilidade.
Você já parou para pensar o que veio fazer aqui, nesse mundo? O que você faz, que te insenta dessa sensação de mediocridade, que te deixa livre, a vontade, em casa? É interessante pensar sobre isso, é muito importante.
A arte me faz bem, me deixa em casa, feliz.
Eu não seria um dentista bem sucedido, muito menos um advogado brilhante, se fosse engenheiro, a população estaria correndo risco de vida. É importante reconhecer que não nasci pra isso, ou pra aquilo. Não é legal sair por aí, com grandes responsabilidades jogando merda no ventilador.
Qualquer um percebe quando alguém está fazendo do ofício, uma arte. Um médico, por exemplo, a gente reconhece se ele está ali porque gosta de pessoas, ou porque precisa manter o sobrenome da família numa placa de metal na fachada de um consultório. Todo paciente sempre lembra com carinho daquele médico humano, atencioso, bem-humorado e interessado.
A gente sabe, não tem como enganar, não existe meio artista, meio gênio. Nunca fui chamado de gênio enquanto fazia relatórios, nunca fui chamado de gênio enquanto transferia uma ligação, entre a venda de um produto, nunca fui excepcional fazendo nada disso. Mas a gente sabe que está fazendo a coisa certa quando chega um e-mail de alguém que está curtindo a nossa arte, o nosso serviço, quando alguém deixa uma mensagem no seu inbox agradecendo pelo seu trabalho, dizendo que, de alguma forma, você tocou na vida daquela pessoa, ou quando alguém pede seu número para trocar ideias sobre o seu ofício, quando alguém diz que você é foda, que aquilo que você produziu é genial, é quando você sente que está provavelmente no caminho certo.

Agradeça


A vida fica melhor quando se agradece mais. Agradecer por um bom almoço, por uma gentileza, pelo sol de quase todas as manhãs, pela chuva, por cada coisa. Agradecer por cada passo, cada vez que respirar, inspirar, agradeça. É uma questão de percepção, de estar bem com o que você tem no momento.

Agradeça o troco, o panfleto. Agradeça seu cachorro quando ele vem feliz ao seu encontro, aquelas lambidas e aqueles pulos exprimem muita coisa. Retribua o afeto. Se tem uma coisa na vida que você tem e pode, é tempo para agradecer. Agradecer, elogiar, tentar compreender, são coisas simples, mas fazem um bem danado.


Elogie o feijão da sua mãe, o vestido estampado da sua avó, vai, tente, vale a pena. 

Curtir e comentar talvez não seja o bastante. É tempo de elogio, na lata, olho a olho.
O sol, as nuvens, o vento, preste bem atenção nisso tudo, veja, apenas agradeça. A vida não é maravilhosa sempre, mas olhe para o que você tem. Dê valor. Ficamos felizes quando somos reconhecidos por algo que fizemos, com o mundo e com todas as outras coisas, não acontece diferente.

Quando o mundo, o seu ambiente e as suas coisas são reconhecidas e apreciadas,  há boas energias, bons momentos e harmonia. Se reconhecer seu dia como algo bom, favorável e singular, assim será. Se reconhecer o seu dia como um peso, uma dor, assim será.


Eu tenho água quentinha para tomar banho antes de trabalhar, obrigado! Ouço bem as maritacas nas arvores, ouço bem um riso longe de alguém que passa na rua. Perfeito.


Não precisa sair  dizendo obrigado as flores, aplaudindo o sol em pé e conversando com as borboletas, ser grato é diferente de ser tonto. Tente entender as coisas que tem a seu favor, reconheça seus recursos, seja grato em suas ações, suas palavras, pense essa gratidão.


Posso ver as crianças brincando, o malabares se apresentando no semáforo, vejo os belos glúteos se movimentando durante uma simples caminhada de manhã. Só tenho a agradecer mesmo, obrigado.




Bruno Estevam


Passa

E a vida passa
quietinha
discreta
aos cantos
aos trancos e barrancos,
mas ela sempre passa
sem erro
sem mais
só passa

em todas as horas
em todos os oi's
em todos os dias

passa para mim
passa para ti
passa pros dois

passa rápido
sem alardes
passa assim
passa despercebida
sem itinerário

passa
só passa
como uma peça
um ato
passa num dizer
passa em cada ponto
passa em cada carta
em cada linha
em cada til 
em cada vírgula do conto
A vida é assim
E ponto.


Bruno Estevam




sem poesia

parei com as poesias
agora mato meu tempo
pelo dinheiro
de quebra
mato minhas crias
sem tempo ocioso
sem tempo parado
mato minhas fantasias

a vida 
que aos poucos esfria
vai matando minha arte
abortando minhas crias


quero meu tempo
meu conto
meus poemas
sem ponto

percebi que a vida
estava vã
estava falsa
corcunda
tal como um travesti 
de sutiã





Bruno Estevam